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Por mais que digam que não: Nós podemos respirar!

Já parou para prestar atenção na sua respiração hoje? Já pensou a sério a respeito do fato de que você pode respirar! Estou a quase um mês no processo de escrita e junção de elementos para a construção desse texto. Nesse tempo, diversas perspectivas a respeito da respiração me foram apresentadas e convido vocês a refletirem comigo sobre elas. 

Vamos começar pela antiguidade, em meu resgate de África, a filosofia do continente se apresenta diariamente em meus estudos. Mas só recentemente tive o prazer de me conectar um pouco mais com a prática da yoga kemetica através do coletivo negro chamado Rekhetyoga, conduzido pelo casal Karimá Serene e Furaha Imani, meus primos, com quem tenho a honra de partilhar dessa jornada de construção de uma comunidade. Mas o fato é que em todas as aulas o foco é sempre na respiração. Shu é a divindade kemetica responsável pelo ar e com eles tenho aprendido que essa é a máxima da yoga: Respirar!

Respirar é o centro de qualquer movimento da yoga e na minha experiência pessoal em relação a isso, respirar também é a parte mais difícil, primeiro porque sou asmática, e respirar é algo que sempre me foi muito caro. Quando você inspira e o ar não vem, a sensação é desesperadora. Segundo, porque, respirar como prática de impulsionar a movimentação do seu corpo é uma forma única de se conhecer, de entrar em contato com o que existe de mais sagrado em você mesmo e é preciso aprender, não apenas a realizar essa conexão, mas estar preparado para ela. A yoga kemetica proporciona isso, é Afrika na essência que há em nós.

Respirar é a certeza da existência. Quando falamos em morte, muitas das vezes utilizamos o termo, “um último suspiro”, quando falamos em nascimento falamos em “sopro de vida”. Respirar é a essência! Enquanto você lê esse texto, se atentou para a sua respiração? Respire, porque, ainda quero trazer mais algumas reflexões sobre isso.

A frase que muito tem acompanhado a movimentação da militância negra nos últimos tempos é, “I don't can breathe”, gritada como palavra de ordem pelo movimento, Black Lives Matter nos EUA, após a morte de Geord Floyd e de outros homens negros vítimas de violência policial, que morreram dizendo entre suas últimas respirações sufocadas, essas palavras, em uma tradução literal, “Eu não consigo respirar”. 

Convido vocês a refletirem a partir desses argumentos que trago, sobre o que é morte e vida, para nós negros e negras que estamos a todo o momento na tentativa desesperadora de permanecer respirando. Fiz essa reflexão apenas quando me voltei a minha ancestralidade, conforme relatei no início do texto. Parece natural respirar, mas não é. Precisamos aprender e quanto melhor respiramos, melhor nós vivemos, a respiração acalma, controla a pressão e o fluxo sanguíneo. Se você deixa a ansiedade controlar a sua respiração, por exemplo, você tem outros sintomas, o coração se acelera, o suor escorre, e tudo isso pode ser amenizado se você possuir o controle da sua respiração. Por isso, respirar é sinônimo de vida!

Veja bem, estamos em meio a uma crise de saúde pública não apenas no Brasil como no mundo e estamos lutando exatamente pelo que? Pelo direito a respirar, o Covid-19 é uma nova versão da Síndrome Respiratória Aguda Grave. A crise se acentua com a política e em nosso caso, no Brasil, pela corrupção e falta de gestão governamental para que todos tenham  acesso  a UTIs que forneçam os respiradores aos acometidos pela doença, nos casos mais graves, em que por cerca de 15 dias os pulmões não podem fazer o trabalho que sempre fazem, oxigenar o sangue e eliminar dióxido de carbono do nosso corpo. Em meio a essa crise política e de saúde internacional, novamente os mais atingidos por ela são as pessoas pretas, principalmente, porque, devido ao racismo estamos em situação de maior vulnerabilidade.

Nós vivemos acuados pelos tentáculos do racismo que tem em sua principal finalidade cercear o nosso direito a vida, nossa possibilidade de respirar. Pensando em todos esses elementos citados acima, chego a primeira conclusão de que respirar é um direito, e a segunda de que nós ainda não temos acesso a plenitude dele. Lembra do inicio do texto? Eu comecei falando sobre a antiguidade, sobre como nossa ancestralidade dominava arte da respiração, ao sermos atingidos por essa maafa (termo em Swahili, citado por Marimba Ani como Grande Desastre), perdemos Ma’at (deusa detentora do equilíbrio universal em Kemet) a ordem social e consequentemente não acessamos Shu, a nossa respiração sagrada.

Como falar em vida, em respirar se na maior parte do tempo estamos em alerta, tentando sobreviver. Nós pretos e pretas temos respiração entrecortada em meio a um desespero e outro, uma inquietude que nos assola a todo o instante, e vocês sabem do que eu estou falando, não preciso trazer exemplos que exploram nossas dores. O que eu quero dizer então é, respire! Você pode! 

Apesar de tudo dizer ao contrário, nós podemos respirar. Nos foi negado contemplar o tempo, pois o trabalho maçante imposto por essa maafa desde o sequestro dos nossos ancestrais, não nos permitia tempo para o descanso, para a contemplação da vida, por isso, estamos sempre apressados e preocupados com o  agora, com  o que temos para comer hoje, mas para pensar no amanhã e contemplar a beleza de planejar o futuro é preciso, respirar. Nós podemos resgatar princípios de uma organização social que pode começar a partir dos nossos lares, com ambições de que podemos ter dias melhores e fartos, compostos pela plenitude da vida. Para que decisões não sejam tomadas na impulsividade, convido vocês que chegaram até aqui, a respirar!

Vamos resgatar a grandiosidade de nossa sociedade preta, juntos. E mesmo que nos impeçam diariamente, nós vamos seguir respirando assim como fizeram nossos ancestrais, para que hoje nós pudéssemos estar aqui reivindicando o direito de resgatar uma respiração, pausada, firme, que oxigene nosso cérebro e permita que possamos redirecionar os nossos passos! Respire! Você pode! 

Vida em abundancia para nós pretinhosidades!

Ankh, Udja, Seneb (Vida, Saúde e Prosperidade).

“De pé raça poderosa”, nós temos muito trabalho a fazer!

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