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Sobre as nossas lutas diárias e necessárias

No último dia 25 de julho organizei junto de outras amigas um evento chamado EmpoderAÇÃO das Pretas, em Uberaba Minas Gerais. O evento teve como objetivo comemorar o dia da Mulher Negra Latina Americana e Caribenha e também o dia da rainha do quilombo do Quariterê, Tereza de Benguela. O evento nasceu de uma vontade minha de militar pelas questões negras e de me unir com outras pessoas que tivessem o mesmo ideal em Uberaba, onde o movimento é pequeno e não atende as demandas atuais da nossa comunidade.

Posso dizer que o saldo desse encontro foi completamente positivo, além de fortificar minha amizade com as organizadoras do evento, pude conhecer outras pessoas que também possuem o mesmo interesse de trabalhar pela questão e isso por si só, já foi um resultado incrível. Porém, junto com tantas coisas positivas uma carga de negatividade atingiu minha vida, minha timeline e meu inbox (hahaha) e confesso que isso me abalou de certa forma. Muitas pessoas vieram me procurar dizendo que meu discurso era de ódio, separatistas e que eu estava vendo racismo em tudo. Como todas essas falas ainda estão rondando e me incomodando resolvi escrever sobre isso.

Acredito que o ser humano é único, cada um tem sua individualidade e junto a isso se soma diversas particularidades tais como cultura, educação ancestralidade, que contribuem para formar um ser único no mundo. Você nunca irá encontrar alguém igual a você, que pense o mesmo que você e isso é a parte mais linda da nossa humanidade. O problema é que conviver com a peculiaridade alheia é algo muito complicado e disso nasce o mito da supremacia, de que um pode vir a ser melhor que o outro, destaco resumidamente que a partir desse ponto de vista nasce o preconceito e com ele situações extremas como o holocausto, as guerras, à escravidão. Claro que o contexto histórico é muito maior, mas vamos partir desse princípio para que possamos chegar a algum ponto nesse texto.

Dentro da minha particularidade eu escolhi militar pelo negro no Brasil. Essa escolha nasce exatamente por uma simples questão: Sou Negra. Ou seja, vivencio as consequências de uma sociedade estruturalmente racista, sei o que é vivenciar o racismo diariamente desde a infância, com histórias minhas e dos meus. Porém, falar sobre o assunto é algo complexo. Que demanda tempo, estudo, leitura, disposição para desconstruir falas racistas que são internalizadas em nós durante toda uma vida, por isso a militância só veio agora.

Não quero falar sobre os casos de racismo que vivenciei, mas quero ressaltar que fiz uma graduação com muito esforço da minha parte e de toda a minha família e reconheço meu privilégio em ter uma família estruturada que pode apoiar as decisões que tomei durante a vida. Ouvi nesse período que não deveria cursar jornalismo, porque essa era uma profissão em que negros não obtinham muito destaque e até hoje guardo essa frase comigo, para provar diariamente que sou negra sim e posso fazer e ser simplesmente o que eu quiser. Porém, essa não é a realidade da maioria dos negros no Brasil. Somos a maior parte da população, só perdemos para países da África e mesmo assim não nos vemos representados em lugar algum.

Realizei um trabalho de TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) sobre religiões de matrizes africanas e foi então que pude falar melhor sobre o assunto. Conheci literaturas negras, pude ler jornalistas que valorizam o registro e a memória cultural de toda essa particularidade humana que citei no início do texto.

Então, chego ao ponto onde quero levar os que lerem esse texto a refletir. Exatamente por conta de todo o histórico mundial de diferenças é que não dá para lutar por tudo. Mas a luta é extremamente necessária, vou me ater ao Brasil, pois como disse é a realidade que vivencio e procuro ler e estudar.

Hoje falo Libras (Lingua Brasileira de Sinais), porque em certo ponto da minha vida conheci uma garotinha muito especial que me mostrou o quanto essa demanda era importante, mas simplesmente não posso dizer que essa é minha luta, porque essa realidade não é algo que eu vivencio, mas sou grata aos interpretes e pessoas surdas que lutaram para que em 2002 um Projeto de Lei fosse assinado transformando os sinais em uma língua reconhecida no nosso país e isso garante equidade aos que necessitam disso. Sou feliz porque pessoas lutaram para que todos os locais públicos possam ter acesso a pessoas deficientes, porque, exatamente por não ter essa vivencia não saberia identificar qual a demanda dessa população e são muitas.

Sou grata aos militantes do movimento LGBTT, porque apesar de não sentir pessoalmente o que é a homofobia, transfobia ou lesbofobia eu sei que ela existe e o movimento precisa se organizar e se movimentar para atender as demandas que esse público precisa. Outro exemplo, não sou vegetariana, mas sei o quanto é necessário reduzir e repensar o consumo de carne no nosso país e no mundo e essa luta também é essencial.

O que eu quero dizer é que precisamos que cada um faça a sua luta, entenda, compreenda e saiba defender aquilo que acredita que é necessário para convencer o outro a mudar suas atitudes estruturais, isso é equidade. Devemos nos abraçar: Não luto pela sua causa, mas apoio a sua luta, no que posso te ajudar? Isso sim é o discurso de igualdade, “de mais amor”, que vejo tantos usarem como argumento para silenciar a fala alheia.

No meu caso milito pelo movimento feminista e negro porque é simplesmente o que eu sou. Mulher e negra. Precisamos entender que diversos movimentos são necessários para a busca de um mundo melhor. E mesmo assim dentro do movimento negro, diversas demandas são necessárias, mulheres negras, homens negros, crianças negras, todos necessitam de falas que possam representá-los e isso é de urgência.

Obviamente não vivemos mais nos tempos da escravidão, do apartheid, ou da falta de direitos civis, mas isso veio através de muita luta, sangue e mortes. E o que vejo hoje é uma falsa ilusão de que somos todos iguais, mentira! Como já disse somos diferentes e únicos e o que precisamos é de igualdade, a história nos diferenciou, batalhamos para que a sociedade possa reparar isso.

O que sinto falta é um olhar de maior apoio com a luta alheia, tentar entender que não vivenciamos a mesma realidade e entender que não caminharemos juntos, mas podemos caminhar lado a lado em busca de um sentimento único: uma sociedade mais igualitária. Chega de tentar silenciar os negros chamando nossas demandas de “vitimismo”. Quem não conhece a demanda alheia não fala sobre ela, e se simpatiza “se ajunte”, “se achegue” para somar, não tente diminuir ou minimizar.

Enfim, estou aí, sou Agnes Maria, negra, mulher, feminista e militante do movimento negro. Meu objetivo agora é trabalhar pelos meus, tentar livrar meus irmãos do que o racismo fez com a nossa autoestima e com a nossa história. Se minha fala te incomoda ela atingiu o objetivo com sucesso, não nasci pra acalentar, eu vim pra incomodar.

Do lado direito da rua direita
Sou leão, sou demais para o seu quintal

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